29 de outubro de 2014

"Só lamente uma vez"

[leia esse poema ao som de "Solamente una vez" - Luis Miguel]

Caio com o sobrenome aflito
interrogo a samambaia
falta água na casa,
falta sede na vida.

Mordo a maçã murcha
tateio a pia seca
encontro a torneira
me torneio
desdobro.

Estico o laço tênue
rogo por ave aranha
grito minha voz de antes
sento no meio fio
choro.

Não há mais ninguém por aqui
todos se foram com fome
todos com risos frouxos
com orgulhos lustrosos.

Peço-me que fique.
Fico.
Finco a dor na faca de serra.
Encerro.
Mais que poeta,
agora sou dor.

27 de agosto de 2014

[segredos de liquidificador]

Penumbra flor do abacateiro
com quantos olhos eu não a vi.
Da vista já cansada,
do olhar submerso por cordialidades.
Sugo do íntimo
(enquanto rasgo com as unhas serradas o peito coberto de pêlos)
o néctar sem deslizes.

Penumbra flor do abacateiro
minha boca que nunca provou tua cor
beija qualquer moço em sinal de desafeto.
E trinca os dentes,
e brinda meus dentes amarelados
com os dentes feitos de mármore.

Na hemorragia do jardim,
jaz aqui em mim
rosas fartas de espinhos
damas-da-noite exalando um perfume não mais seu.
Cheiro-te como se cheira defunto.
E faço o nome do pai.

Não voo com as asas tão aceleradas
o bico fino
atropelado pelo vento seco e infiel
risca de giz o alimento
e eu rodopio no ar
com o bico cansado
com as asas já tortas
com as clavículas que digo não ter
quebradas.

Penumbra flor do abacateiro
dê-me esse mel infértil
tépido e obsoleto
o qual eu nunca vi
e nunca sentirei.
Engana-me com esse açúcar industrial
com essa água colorida
com esse cantar repetitivo de pássaro de gaiola.

Penumbra flor do abacateiro
se é que você existe
salve meu coração diabético
com esse olhar doce que vive se pondo.
Enforca-me com tua folha pouca
com o teu fruto esverdeado de som
e assassina-me com tinta de urucuzeiro
açafrão, doce pó amarelo.

Digo algum reverso
e entristeço só de pensar
que essa inexistente flor de abacateiro
vai virar esterco pra café.

Abacate que cai e apodrece
enquanto que em mim
pobre pássaro beija-flor
resta apenas o codinome envelhecido
cheiro de vômito azedo
cheiro de pena cintilante
cheiro de pó de cheiro
de cocaína enrustida nas narinas entupidas.

Beija-flor,
assino-te deformado

pela penumbra flor do abacateiro.

13 de agosto de 2014

[dor rima com amor]

Desfruta-me o gosto ríspido.
Engulo com dor.
Dizem-me pra tomar remédio.
Pra tomar chá.
Pra tomar rumo.

Me aprumo.
Passo a mão no cabelo.
Escovo os dentes.
Tiro o sono
com uma xícara de café.

Abro a janela,
e escolho o melhor sol para vestir.
Mas estou feito pó.
Estou feito esses copos
que se quebram cheios de cachaça.

Desço as esquedas.
Analiso as orações nas ruas,
nos pés cheio de pressa,
nas mãos cheias de tchaus.

Me dói a garganta.
Me dói não poder gritar.
Mas a garganta não dói mais
que meu coração
ferido por amar.

(E ele não aceita antibióticos).


Lucas Veiga

9 de agosto de 2014

[Aos Teus, à Deus]


- Cristo suicidou-se.

Não me contive. Era inevitável o choro. Rebusquei em minhas gavetas, algum sinal de corda. Alguma lâmina sem corte. Alguma arma coberta de fogo e de razão. Quis fugir. Mas lembrei-me que entre perder-se no mundo e perder-se em si mesmo, eu já estava perdido nos dois. Quando me deram a notícia, veio em mente a figura exata do acontecido. Judas entregou cristo (por algumas moedas) para cristo. Entende a imperfeição da perfeição? Pude imaginar, de olhos abertos, um cristo vaidoso, vestido pela desnudez de ser o rei e de não ser nada. Uma corda áspera, forte, apertava seu pescoço. E ele chorava sangue. E ele morria pelas próprias mãos. Pelas próprias chagas. Pelas próprias feridas.
Assim, acontece comigo. E pode estar acontecendo com todos nós. Vivemos aparentemente como cristo feitor de milagres. Mas há, dentro de mim uma alma podre. Em decomposição. Pulmões rasgados. Estômago como ninho de baratas. Coração suicida. 
Não quis ir ao velório. Ele ressurgiu no terceiro dia. Nos sufoca com a tristeza, para provar o seu narcisismo. Eu sou cego. E nunca poderei ver para crer. 
E a você, que se faz de cristo, que reparte o pão e cospe no prato, que cura leprosos com o cataplasma feito por minhas lágrimas, que anda sobre os afogados, a você que anda com putas, com bêbados, com doentes, a você que transforma vômito em vinho para encher-me. Para embriagar-me. De tudo que você me ensinou, há apenas uma coisa que aprendi. Que o deus que você me fez seguir não é amor, é desamor. 



Lucas Veiga
Existem inúmeras coisas que você teria que entender, uma delas, talvez a mais importante, é que eu não sou o tipo de pessoa que vale a pena. Entende? Eu sei que não é uma coisa muito fácil de ser compreendida. Mas, infelizmente, eu não nasci pra ser preso a alguém. Nasci para ser pássaro sozinho. Mas não preso em gaiola. Se tenho asas, por que não posso voar? Mas eu também não quero partir quebrando vidraças. O seu coração é uma vidraça? Cuidado. 
Pássaros se chocam com vidraças. E de todas as vezes que vi, um dos dois saiu ferido. Amar dói.


Lucas Veiga

7 de agosto de 2014

[sobre morangos e corações]

Quando você chegou os morangos já estavam podres. Sim, podres. Não, mofo é coisa de Caio. E há tempos eu não caio, porque há tempos que estou no chão. As quedas já são inválidas. E quando você chegou, os morangos já estavam podres. Mas as coisas não são bem assim. Quando te telefonei, naquele dia chuvoso, os morangos estavam vivos. Carnudos. Vermelhos. Pareciam até o meu coração, antes que você chegasse. Mas você chegou. E mudou tudo. O coração está podre e os morangos também.
Mas não quero falar sobre morangos. Não quero falar sobre a maneira que eles apodreceram. Não quero falar da maneira que você os jogou fora. Nem falar da maneira que os guardei. Quero falar sobre tudo que eu quis ser pra você e acabei não sendo.
Desculpa, tá? Não foi intenção minha, mas eu te amei demais. E pra mim já deu. Não vou perder mais tempo com você. Esteja livre. Não digo que estarei te esperando, mas acredito que sempre estarei com morangos prontos pra você. Mas morangos como eles devem ser: doces, vermelhos, carnudos. Eu te amei da melhor maneira. Na verdade, eu ainda te amo da melhor maneira. Mas amor quando não vinga, não adianta ficar forçando. Vá em frente. Um dia, quando te der fome de amor ( e de morangos), volte. Juro pra você que eles não estarão podres. Mas já não posso prometer o mesmo sobre o meu coração. Porque foi você mesmo que o fez apodrecer.


Lucas Veiga