27 de agosto de 2014

[segredos de liquidificador]

Penumbra flor do abacateiro
com quantos olhos eu não a vi.
Da vista já cansada,
do olhar submerso por cordialidades.
Sugo do íntimo
(enquanto rasgo com as unhas serradas o peito coberto de pêlos)
o néctar sem deslizes.

Penumbra flor do abacateiro
minha boca que nunca provou tua cor
beija qualquer moço em sinal de desafeto.
E trinca os dentes,
e brinda meus dentes amarelados
com os dentes feitos de mármore.

Na hemorragia do jardim,
jaz aqui em mim
rosas fartas de espinhos
damas-da-noite exalando um perfume não mais seu.
Cheiro-te como se cheira defunto.
E faço o nome do pai.

Não voo com as asas tão aceleradas
o bico fino
atropelado pelo vento seco e infiel
risca de giz o alimento
e eu rodopio no ar
com o bico cansado
com as asas já tortas
com as clavículas que digo não ter
quebradas.

Penumbra flor do abacateiro
dê-me esse mel infértil
tépido e obsoleto
o qual eu nunca vi
e nunca sentirei.
Engana-me com esse açúcar industrial
com essa água colorida
com esse cantar repetitivo de pássaro de gaiola.

Penumbra flor do abacateiro
se é que você existe
salve meu coração diabético
com esse olhar doce que vive se pondo.
Enforca-me com tua folha pouca
com o teu fruto esverdeado de som
e assassina-me com tinta de urucuzeiro
açafrão, doce pó amarelo.

Digo algum reverso
e entristeço só de pensar
que essa inexistente flor de abacateiro
vai virar esterco pra café.

Abacate que cai e apodrece
enquanto que em mim
pobre pássaro beija-flor
resta apenas o codinome envelhecido
cheiro de vômito azedo
cheiro de pena cintilante
cheiro de pó de cheiro
de cocaína enrustida nas narinas entupidas.

Beija-flor,
assino-te deformado

pela penumbra flor do abacateiro.

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